Lua Cheia 17 janeiro 2022
Pensei intitular este texto “destralhar”, pois algumas das atuais conjunções planetárias convidam a expurgar o excesso, numa perspetiva minimalista de “menos é mais” que nos permita recentrar na autoridade interna. Depois pus-me a reler bibliografia sobre o discurso publicitário, recordando como capitaliza o desejo a partir de uma abstração do significado conferido aos objetos, inseridos num sistema simbólico cada vez mais desligado do contexto material. De facto, os produtos hoje significam sobretudo por conotação, i.e., pelas narrativas que convocam e prometem materializar, num universo utópico de acesso universal aos bens de consumo.
No século XIX, quando a publicidade começou a prosperar, fruto da revolução industrial e da mecanização que viria a permitir a produção em série, os produtos eram anunciados pelas suas qualidades concretas. Hoje, a publicidade — a maior e mais produtiva indústria da cultura, note-se! — ancora-se no pensamento mágico, como sugere John Berger no clássico Ways of Seeing que, apesar de fazer agora 50 anos, continua a propor uma leitura atual dos mecanismos de alienação contemporânea (a série original da BBC está disponível online). Através da repetição e da recorrência em diversos media, que saturam os espaços físico e virtual, este discurso é naturalizado e torna invisíveis as assimetrias geopolíticas oriundas da globalização.
Como lembra a jornalista de investigação Naomi Klein em No Logo (1999), o marketing visa dissociar o produto das condições materiais de produção. A fachada rutilante do centro comercial esconde as sweatshops — situadas nas (ironicamente denominadas) “zonas de comércio livre”, sujeitas à desregulamentação ecológica e laboral —, que empregam sobretudo mulheres, com frequência deslocadas das suas zonas de residência e encerradas em fábricas-prisão, onde, não raro, são sujeitas a exames médicos compulsórios, de modo a garantir que não engravidam, ameaçando a rentabilidade do negócio. As corporações mais poderosas do mundo, tanto nas áreas da eletrónica como da moda, têm sido repetidamente associadas a este tipo de prática, que também produz, claro está, a mercadoria que compramos a “preços da China”.
A máquina discursiva que alimenta o consumismo baseia-se em princípios simples, repetidos até à exaustão pela sua comprovada eficácia — primeiro, destrói-se o sentido de autoestima do indivíduo (cuja vida entediante é incomparável ao glamour apresentado nos anúncios que o fazem sonhar); depois, apresenta-se o produto ou serviço como solução miraculosa e instantânea (o jantar congelado que harmoniza o ambiente familiar da mãe exausta, ou o bólide descapotável que confere potência sexual ao homem na crise da meia idade). Embora cada vez mais se procurem seduzir nichos de mercado de público-alvo mais específico, representando alterações socioculturais coevas (como, por exemplo, a família monoparental ou o casal gay), a publicidade reitera as políticas de género hegemónicas. De facto, o corpo masculino é sistematicamente associado à máquina e ao espaço exterior; o corpo feminino, hiper-sexualizado e, em simultâneo, sanitizado (com fluidos menstruais azuis absorvidos por pensos higiénicos desodorizantes) é associado ao espaço doméstico e aos campos semânticos da limpeza, da alimentação e da beleza (maquilhagem e afins).
Bastas vezes, a credibilidade do produto é fundamentada por referência à ciência enquanto “entidade” estática (vs. processo), sistema de verdade absoluta em que o conhecimento é conceptualizado como domínio sobre a realidade desordenada, refletindo a relação predatória neoliberal com a natureza. Assim, o produto é apresentado como uma versão tecnologicamente melhorada do fenómeno natural, encapsulando as suas qualidades num objeto que torna mais fácil o consumo — lembremos os práticos e saborosos snacks que combinam várias frutas em boiões ou saquetas (mais plástico!). Será curioso pensarmos até que ponto este tipo de estratégia é aplicada noutras áreas do dia-a-dia em que o discurso científico surge como incontestável e objetivo, e não uma arena de discussão e contínua mudança, onde convivem opiniões contraditórias e nem sempre mutuamente exclusivas.
A nível da temporalidade, a publicidade apresenta o passado como memória nostálgica — recordemos os famosos anúncios natalícios do azeite nacional onde, após a missa do galo, toda a família se reúne à mesa presidida pelo patriarca e servida pelas mulheres. O futuro pertence ao desejo por satisfazer e será preenchido pela aquisição do produto. O presente — único tempo de ação possível — é pura e simplesmente obliterado, sendo o agenciamento do cidadão-consumidor reduzido à escolha entre a crescente variedade de produtos idênticos, apenas diferenciáveis pelas narrativas que sobre eles se tecem (basta ter a paciência de ler os ingredientes nas prateleiras do supermercado para chegar a esta conclusão, aliás). Por outro lado, como argumenta Judith Williamson, o discurso publicitário opera a espacialização da consciência e, jogando com o impulso básico de capturar o tempo, apresenta os bens materiais como “uma barricada contra a passagem do tempo e as inseguranças da mudança” (Decoding Advertisements: Ideology and Meaning in Adverstising, 2000, 156).
Sobejos motivos para ficarmos aprisionados na mecânica do desejo, que nos enche a vida (e o apartamento) de tralha. O desejo, porém, é alimentado pela sua constante insatisfação, como vem cantando Mick Jagger desde 1965, quando os Rolling Stones pareciam meninos de coro viciosos, até aos mega concertos em que os seus corpos emaciados anunciavam o trend do heroin chic na década de 1990. Nem a voz maviosa do homem da rádio, nem a publicidade ao detergente de roupa na TV, tampouco a rapariga pouco cooperante conseguem preencher a insatisfação de Jagger, ele mesmo multiplicado nas serigrafias de Andy Warhol, como epíteto da estrela de rock reificada em objeto de consumo.
Voltado para o exterior, o desejo autoalimenta-se num jogo de multiplicação que nos esvai. A nível macro, tal manifesta-se na lógica de crescimento exponencial do lucro subjacente ao sistema capitalista que, aliado ao poder incontrolável da tecnologia, alcançou um beco sem saída. Procuramos subir uma escada sem fim em que cada degrau nos leva mais abaixo.
No entanto, como recorda Tulku Lobsang, mestre budista da tradição Tantrayana, o desejo é uma força vital que busca a união e deve ser expandido de modo compassivo (Amor e Saúde: O Amor é a melhor medicina, 2013). Em contraste com o “desejo-vontade”, que se esgota na busca da sua satisfação, o “grande desejo”, incontido por qualquer (des)gosto, é o amor incondicional que tudo abarca, sem nada excluir. Idêntico desejo alumia os místicos de todas as religiões, que procuram entregar a vida ao Amado, consumindo-se na adoração do divino.
A Escada de Jacob (Génesis, 28: 11-19) evoca também este movimento dinâmico — que poderá ainda representar a ascensão física da Kundalini, ocorre-me. Percorrida por uma multidão de anjos subindo e descendo, esta escada aparece em sonhos a Jacob, quando este dormia sob a imensidão da abóboda celestial. Sujeita a várias interpretações no contexto das três religiões monoteístas que consideram o Antigo Testamento um livro sagrado, este eixo vertical aponta para o elo entre a nossa natureza humana — habitada por tantos desejos problemáticos — e a nossa dimensão divina — capaz de experienciar o desejo criativo infinito da consciência pura. Possamos, pois, ascender em desejo, iluminar.