Lua Nova, 2 de março de 2022
Sempre preferi jardins a bibliotecas, e por isso os testes psicotécnicos, estruturados pela lógica da oposição binária — escolhes passar o dia no escritório ou no campo — apontaram-me agricultora de vocação, esquecendo que se pode ler ao ar livre. Já li e escrevi muitos quilómetros sentada na relva, deitada na areia, suspensa na rede à sombra, encostada ao tronco de uma árvore. Mas foi numa pequena biblioteca, a que acedia sobretudo como investigadora e docente, que me deixei fascinar por um poster que perguntava, ano após ano, em letras garrafais — Can art save the world?
Esta pergunta pode ser desdobrada em várias hipóteses, como veremos. Por um lado, questiona a funcionalidade da produção artística, contrariando uma corrente, oriunda do simbolismo e refinada no modernismo, que desvincula a arte da esfera de ação no mundo — a arte pela arte, como clamam ainda certos eruditos que parecem ter perdido o comboio da história. Durante quase vinte e cinco anos, enquanto professora de literatura e artes visuais, a minha abordagem pedagógica foi sempre guiada pela urgência de fortalecer o vínculo entre a arte e a experiência, pois só assim a fruição estética comunica de modo vital com os alunos, só assim cada um poderá integrar os textos (visuais, verbais, aurais) na sua mundivisão e agir a partir desse saber partilhado.
A arte pode salvar o mundo por ser ponte entre o seu criador e aqueles que ensaiam repetidas vezes, ao longo de séculos mesmo, como atestam os clássicos, a sua leitura. A receção é, antes de mais um diálogo livre entre sensibilidades informadas por contextos vários, e implica empenho, roga o risco da viagem pelo enigma dos sentidos em aberto. A arte pode salvar o mundo por pedir às criaturas que (re)criem elas mesmas o mistério do encontro com o sopro da inspiração.
Porque a arte pede, afinal, de modo mais ou menos subtil, ou até brutal, que nos tornemos criadores, assumindo o maior poder de imaginar. E quando trazemos tal dom para os dias, percebemos que a beleza é uma força imensa capaz de resistir à mais feroz opressão, unindo-nos ao sagrado. Honrar a beleza é, na verdade, um ato político-espiritual com implicações no quotidiano — inclui o modo de habitar o corpo em altivez e graça; o esmero ao desenhar um coração de canela no arroz doce acabado de sair do lume; o amor com que plantamos petúnias cuidando das gradações de cor. A liberdade é o caminho criativo a desbravar.