Ainda assim, o Amor

Lua Cheia, 18 março 2022

Hoje em dia, vemos no mundo uma desigualdade brutal, determinada por questões geopolíticas e históricas, que continuam a servir sobretudo o ocidente e uma elite de 1% cujo rosto desconhecemos. O setor político encontra-se há muito refém do sistema financeiro, servindo apenas os interesses da dezena de megacorporações que dominam o mercado. Sabemos que o desastre climático está eminente, sem sinal das mudanças radicais necessárias para desacelerar os efeitos da poluição gerada desde a revolução industrial. Esta catástrofe ecológica gerou já milhões de refugiados, vítimas também de guerras alimentadas por regimes corruptos, explorados pelas grandes potências com interesse em matérias primas. Atravessamos novo ciclo de radicalismo ideológico, como sucede comummente em momentos de crise económico-financeira. A tecnocracia crescente ameaça a liberdade individual a vários níveis…

A lista é longa, na verdade. E, sem dúvida, convém manter olhos abertos para podermos exercer o nosso julgamento crítico e defender aquilo em que acreditamos. No entanto, é de igual modo importante guardar distância, para não sermos manipulados pela comunicação social, um polvo de mil tentáculos cada vez com mais canais de (des)informação. A mensagem constante — que tem vindo a ser reforçada nos últimos dois anos, passados em declarado estado de sítio — é o medo. Ora, o medo gera uma contração que nos diminui. Os seus efeitos são mensuráveis a nível do impacto negativo imediato no sistema imunitário, por exemplo.

O desafio, pois, será permanecer testemunha do horror no mundo, mantendo, ainda assim, uma frequência elevada. O que, trocado por miúdos, quer dizer amar mais, sorrir mais, agradecer mais. Nestes tempos agitados, ou perdemos pé no drama, ou escolhemos cultivar a serenidade interna. Cada qual terá os seus recursos, claro, desde a jardinagem (pôr as mãos na terra e cuidar de plantas traz paz), até à dança (mover o corpo ajuda a desbloquear emoções e cria fluidez interna). Importante será ter essa consciência, de modo a podermos recorrer a tais ferramentas sempre que nos sentirmos descentrados. A capacidade de autorregulação é uma competência fulcral para o bem-estar.

A propósito da consciência dupla — do horror e do amor — recordo-me  da imagem icónica do coração mariano, cravejado de punhais, como se encontra nalguns altares católicos. Gotas de sangue à parte (minúcia barroca para abalar os fiéis), esta representação evoca precisamente a capacidade amorosa de transfigurar a dor, no crisol do coração. Apesar de ciente de toda a desgraça, eu escolho, ainda assim, o amor.

Image Diana V. Almeida. Fridays for Future. Lisboa, 2021.
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