Lua Nova, 2 outubro 2024
Portugal é um dos países europeus onde mais poesia se publica, com uma longa tradição de poetas escrevendo para o espaço público, seja letras de canções ou slogans publicitários. Recordemos “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, com que Pessoa queria vender Coca-Cola (beberagem que só seria admitida nas nossas fronteiras em 1977, porém); ou “Há mar e mar, há ir e voltar”, que Alexandre O’Neill escreveu para a campanha do Instituto de Socorros a Náufragos. Recentemente, os PMV (Painéis de Mensagens Variáveis) nas autoestradas faíscam também com poesia, desde o “Portugal chama por si”, trocadilho pedindo a colaboração dos cidadãos para evitar incêndios, até “O melhor presente é a sua presença”, repto para evitar acidentes rodoviários durante a quadra natalícia.
Esta última injunção ressoou-me no cérebro quilómetros afora, nas últimas viagens para a consoada em família, fazendo-me pensar, por um lado, no absurdo de equacionarmos a celebração com o alienamento e, por outro, no imperativo fetichista de demonstrar bem-querença através de objetos. O recontro de família é por vezes eivado de stress, mascarado por sorrisos; bebemos, pois, mais um copo, para esvaziar cabeça e coração. Desamor e frieza escondem-se também com o brilho dos papéis de embrulho ou, pior ainda, com o valor monetário das prendas, correlativo da estima.
A nível pessoal, na relação connosco próprios, tendemos a usar idêntico esquema. Para nos escusarmos de encarar as dores acumuladas, as tensões internas por resolver, recorremos a elaborados esquemas de fuga, num jogo de múltiplas compulsões. Ou então sucumbimos ao chamado das coisas, decidindo enganar a tristeza numa ida às compras, vista como recompensa pelo nosso merecimento.
A presença, por contraste, pede um estado nu de aceitação e lucidez, fundado na perceção de sermos observadores dinâmicos de uma realidade complexa e interconectada, também ela em processo fluido. Acolhendo o nosso ser, deixamos de lado a autocrítica corrosiva, que se espelha no modo como afrontamos o mundo, e podemos repousar no tempo do agora.
A ofensa e ansiedade dão, pois, lugar à claridade de espírito, que também exteriormente nos ilumina, na consciência da contingência do contexto, da fugacidade das demais presenças. Somos todos ensombrados pela morte, porém, é na entrega à faculdade de ser-presente que reside a nossa possível resistência e, quem sabe, a nossa superação.