Lua Nova, 1 abril 2022
Há pessoas que parecem imortais na nossa vida, tanto pelo seu vigor como pelo amor que lhes temos. A avó Tereza era assim — cabelo negro erguido em poupa, vestido de seda garrida — graciosa e firme. Porém, quando menos esperávamos, começou a envelhecer, a ficar mais pequena, e depois morreu. Foi um baque para todos na família, e embora tivéssemos optado por manter a discrição, o funeral encheu-se de vizinhas chorosas, agarradas a mim, carpindo mágoas.
O medo da dor é tal que enterramos a tristeza e só em ocasiões apropriadas ousamos chorar. A mulher desgrenhada presa ao meu braço lamentava a sua história, não a partida da minha avó, usando o contexto para uma catarse emocional. Também eu aproveitei o embalo e segui para terapia prolongada, escolhendo, enfim, lidar com uma série de feridas.
O quotidiano funcional não se coaduna com a fragilidade. Por isso, vamos escondendo mágoas, até as esquecermos sob uma série de hábitos que simulam conforto. Claro que, quando menos esperamos, acabamos por ser de novo confrontados com estas questões suspensas, que teimam em regressar à tona, vez após vez.
Mesmo aqueles que se vangloriam de ter escolhido o caminho espiritual muitas vezes ignoram a sombra, preferindo transitar por experiências orquestradas para a alegria. Afinal, já bastará o rame-rame da vida obediente e cega, quanto mais agora pagar workshops e retiros para sermos confrontados com a infelicidade.
Para seguirmos, porém, temos de fazer feliz a nossa ferida; ou seja, precisamos mergulhar nesses lugares obscuros da consciência para alumiar a dor. O desafio será trilhar esse caminho em compaixão e liberdade, sem culpa nem expetativa. Conseguiremos nós chegar à raiz do golpe, olhar de frente os factos, aceitar todo o cenário e, a partir desse terrível e clarividente saber, encontrar o dom? Porque todo o trauma oculta um talento, é terra fértil para florir, feliz ferida.
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